Miolando

31 outubro, 2007

pela manhã


Na bruma da manhã
tinha os olhos baços
a pele orvalha
e o gosto a outro sabor
o
sentei-me
olhei
e pedi
o
que na tarte ondulada a fumegar
espetassem paus de canela
e uma peça descascada às fatias
...
como fundo
açucar em pó.
o
Obrigada. Esteja à vontade. Não tenho pressa.

30 outubro, 2007

diária (4)

"quando o ritmo provoca o balanço do corpo, quando o meu sopro reinventa o seu reequilíbrio - esse é um dos momentos mágicos na vida de um músico, a sua música ser tão forte que provoca a vontade, o desejo, a dança, o canto.
dizzy disse: certos dias acordamos, sopramos e tudo sai bem - nesse instante ganhamos nós, o instrumento perde; mas outras manhãs há em que despertamos e nada acontece como queremos - nesses momentos é o trompete que vence; e tudo se passará desde então nesse jogo entre nós e o instrumento; um dia morremos, o trompete vence.
há um bicho que, pressentindo, se afasta para morrer; qual o seu nome? qual o animal que vai até onde for preciso para desaparecer?
hoje não pego no instrumento para te fazer bailar. esta noite não voltarei a casa para adormecer no teu colo. não se deve pensar muito senão endoidece-se. é uma derrota enlouquecer e continuar-se vivo." eugénio alves da cruz. beira - moçambique. 30 de outubro de 1974

29 outubro, 2007



de ainda água





leio-te sentada sobre rosas

celebro-te:

culto pagão

mágica fonte

corpo total


...

.

26 outubro, 2007

diária (3)

"nestes tempos últimos tenho mais tempo. não sei se me não faz mal, momentos mais para tanto poder de acontecer. escrevi do receio que sinto ao ler um poema, anotei sobre sentimento parecido na audição de melodia que me deixe abandonado a quê, atarantado perante que sentidos novos, menciono de novo o medo dos teus olhos, o teu olhar-me, desculpa, não consigo evitar - sei que não acreditas. uma mentira pode ser verdadeira. afirmar que algo aconteceu e tudo girar depois em torno desse acontecer que não foi. não questiono o motivo da invenção nem a moralidade da expressão falsa nem as possíveis consequências. descobriram-se compositores que jamais haviam composto determinadas melodias assumidas como suas. descobriram-se compositores que haviam composto determinada melodia jamais assumida como deles. sempre tive medo de ti. todo o amor que fiz foi por pânico, foi assustado que te tomei como louco, amedrontado que te verguei a que prazer. descobriram-se compositores que jamais haviam composto determinada melodia, descobriram-se compositores que haviam composto determinada melodia que não era deles. estava próximo, muito próximo de morrer tudo todo totalmente em ti, de ser a verdade mais pura e mais frágil, menos muito menos, mais muito mais." eugénio alves da cruz. beira. moçambique. 24 de outubro de 1965

25 outubro, 2007

diária (2)

"as missas; compor uma missa nos dias de hoje é tão importante como será a criação da ópera e a elaboração da sinfonia anos mais tarde. sabias que uma missa se divide em várias partes? kyrie, glória, credo... e que poderão ser mais de uma dezena em dias solenes (missa solemnis) - a missa "ordinária" terá cinco ou seis, no máximo. a polifonia renascentista: o feliz e progressivo abandono do cantochão, do cantus firmus medievo, várias vozes interdependentes, contrapontísticas, a invenção de linhas para além do tenor, a técnica da imitação, o tempo dos cânones, o pensamento único, horizontal, a dar origem a um elaborado sentido vertical do acorde, da harmonia, da ascensão em voo a deus... e mais, que dizer-te, muito mais, deste ano de 1556 em que vivo sobreviverão as missas, as missas e os motetes, serão lembrados unicamente os nomes mas duvido que os corpos, nem as lembranças que lhes guardamos se as não anotarmos, as letras mas não as coisas que tocamos e que as letras contam, é assim, tantas vezes dou por mim preso neste passado que a música não salva, não salva mesmo, venham poetas e músicos afirmar diferente mas não salva, sei-o, eu que com o meu canto permanentemente asfixiado nas melodias de josquin e nas vozes de lassus (entregaram-me há pouco um motete de tallis, cantaremos amanhã na catedral) queria apenas ter sido teu homem e ter sido pai de filhos nossos" eugénio alves da cruz. porto. 24 de outubro de 1556

24 outubro, 2007


arranjem-me
palavras
que
as
que
tenho
aqui
na
minha
pequena
caixa
de
veludo

foram
assaltadas
o

23 outubro, 2007

diária (1)

"situações estranhas, há meses sem a ver ( andando ela em ti, voando de vez em quando, em ti de lá para cá), há meses sem a rever ( ainda que a pressintas dentro de ti, voando em ti de onde para onde como lembranças de vez em quando fortes), há meses a esquecê-la ( de quando em quando um leve odor uma leve imagem um leve toque da sua asa na tua pele interna na tua face) e quando a reencontras falas de situações estranhas, falas de coisas estranhas, do teu evitar poemas e melodias que te façam cortar e explodir (por isso não lês, por tal guardaste urgentemente o saxofone), e (apesar da violência com que a tomaste) quando a revês contas que ainda tens medo do seu olhar " eugénio alves da cruz. porto. 21 de outubro de 2007

20 outubro, 2007

leve.antar


o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
o
Quando abri os olhos
estava tudo azul primeiro
o
depois vi árvores de copas amarelas
antenas em espiga
e no fundo contra o azul
o
montanhas redondas
brotavam
o
as árvores espiavam
as espigas em alerta
as montanhas esperavam
o
Quando me levantei
uma brisa correu o vale
e as árvores faziam ondas
as antenas aplaudiam
as montanhas murmuravam
o
estavam à espera que eu nascesse
e soltasse as raízes
da terra.

16 outubro, 2007

REVE


Como se das mãos se fixasse
imóvel

uma impressão algo vegetal
de carvão frágil




Então, um resgate de azul
eclode sobre o fundo
da caverna
onde


existimos

15.10

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água


assim


preciso


a palavra


cintilação

momento


fogo posto


avidez


água




.

13 outubro, 2007

odisseia no espaço


encontrámos a lua
crescente
rugosa cratera

Vamos caminhar
Revistar
calçámos as botas de explorador
e com os pés am ângulo raso
caminhámos

Estou aqui
Eu também
Então anda
e andámos

passo a passo
pés de crude
carimbo na terra
branca seca

a certa altura
Onde estááááááaás?
(perdi-me)
Estou aquiiiiiiiiiiiiiiiii
(prendeu-se)
à espera

NÃO, espera
tarde de mais...

veio com lanço
perna de ângulo obtuso
passou a recto

e na explosão
a lua saiu minguante

saltaram-me as botas
caí numa cratera
aterrei numa rede

lua em cheio
e depois um urro
prolongado
estendido no ar

Há vida
concluí

Qual é o caminho de volta?

10 outubro, 2007

sem imagem a olho nua

Se ao olhar o horizonte te veria
não saberia dizer
pelo que o horizonte
é mais do que uma linha que se traça


Se ao olhar no fundo dos teus olhos te veria
não saberia dizer
pelo que os olhos guardam
mais do que o que se pode conter
mais do que o que se pode contar

Se ao me perguntares queres ouvir
não saberia dizer
pelo que as palavras se soltam
e fogem e voltam livres
en.demo.aninhadas


Se ao olhar o horizonte
me perguntares o que guardam os meus olhos
não saberia dizer


mas saberia chorar
as palavras



que não proferidas
se tomam por feridas.

07 outubro, 2007

Árvore



mulher de pernas para o mar

seira da paz prometida



mármore devorador

umbigo da terra

ouvido interior



súplica e olvido

eu, entre pedras e perdas

perdido



.....................................arvoando





05 outubro, 2007







o
o
o
o
o
o
o
o
Aqui pedra
dura com casca
o
Aí verdura
tenra com casa
o
Em meio água
tenra para caminhar
dura para lavar
o
troquemos de letras?
o
no d põe c
no n põe r
e terás o que buscas
num chão de raízes.

02 outubro, 2007

AURS MESCLATZ AB ARGEN

Os teus dedos oxidaram uma espécie de tenacidade quando


habituámos os nossos corpos
sólidos à luz escura
e a espera (o tempo?) tornou-se, de repente, um fim.

satisfizemos o movimento em enlaces precários e
assim, naturalmente, nos preparámos para viver outros modos de ausência.

Nem de ouro ou prata, mas com as matérias que fundes,


dobrámos o sentido da decadência
a morte
pedaços de inferno na origem do amor.

E as razões da poesia brotaram, bêbadas, do metal líquido
enquanto a água da língua continua correndo por esse rasgão …


19.08.2007

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