Miolando

29 novembro, 2006

* * * * * * *

As estrelas têm cabelos
presos por uma fita
ao umbigo da mãe
noite.

Ela as alimenta
no simples gesto de entrançar
faúlhas que se soltam
em espirros de bebé.
Fogo fugido, filho perdido…
Ela sabe. Mas quando crescem
as estrelas cortam o cabelo
curto curto.
E a tesoura cadente
crava os bicos no coração
da mãe preta.

Os buracos sangram dor.
Ela constela-se
do mesmo amor.

Não é assim?

Puxa o fio, que hoje é dia,
de certo rio que fez nascer,
de certo nó, desembocou,
que hoje é dia, fez-lo novelo.

puxa o fio, porque é assim,
que o "nó de mim" se faz em rio,
que o rio assim te puxa a fio,
que hoje é dia, não é assim?
29.11.06

pour toi

Do ovo redondo
em forma de maçã
saiu a menina.


E todos vieram ver
o primeiro gomo
da tangerina.


Tinha cor de canela
olhos de oliva
cabelo de açafrão
e uma carinha
de meter as pessoas
no coração.




(ilustração: Danuta Wojciechowska)

27 novembro, 2006


a hora que a morte me veste bonito neste fraque negro
(finalmente belo apareço translúcido)
não consigo pedir nem mais um momento
um olho segundos mais aberto
inicio de sentir medo em chegar tarde à festa
ao jantar
onde de certeza os apóstolos
onde o mestre com certezas
onde tú e a impossibilidade eterna de viver
agora
tudo o que finalmente sei nos faria feliz

(casadaconchada.coimbra.27denovembrode2006 - fotodeadrianomirandainpúblicode27denovembrode2006)

mário cesariny.

26 novembro, 2006

cabeça vazia ou diabo ou razia

Cabeça vazia
é do diabo oficina.
Raios de mafarrico,
o que andas aí a fazer?
Este sótão está cheio
entulhado
de papéis, rascunhos,
de coisas por escrever, outras por acabar,
de pedras, caroços, espinhas...
Como consegues trabalhar?
Como te orientas?
Que artes usas tu?

A porta
é da casa serventia.

SAI! JÁ!
Sobe as paredes
escorrega pelo tecto cai lá fora
e fecha a porta
que não és de Braga.

Só voltas a entrar
quando fores convidado.
É essa a regra de ouro.
Foi o que acordámos,
lembras-te?

A cabeça vazia
vai ser agora de mim oficina.

Que comece a razia...

25 novembro, 2006

miguel

manhãs de orvalho
tardes de água
noites de luz
parabéns***

COGNIÇÕES.pontes.

a ponte ruir enquanto a atravessava.
tudo afunda excepto o amor.
o amor é o que fica: resíduo da eternidade: só o amor é eterno.
o próprio tempo desaparecerá; depois, mas desaparecerá: com o último tempo.
o que é amar numa vida que é um naufrágio?
uma ponte suspensa frágil.
questão mais próxima do amor é a morte; o amor traz a morte.
para os homens e para as mulheres o amor é o limite.
talvez deus conheça algo mais, ele é o amor e talvez um pouco para lá dele.
foi quem nos amou que nos trouxe a morte; a morte é uma dádiva do amor.
a morte é uma experiência de transformação radical, a mais.
a experiência do amor é a experiência da transformação, a maior.
foi por o ter conhecido que mudou de vida.
o amor é um segundo e transforma tudo.
porque a morte muda tudo - a morte é o amor.
o amor transforma o feio em belo.
a falta de amor torna tudo feio.
ser eterno é amar e morrer.
poesia: poesis: pôr, colocar no universo o que não era ainda nele.
fazer o universo crescer.
os homens e as mulheres acrescentam.
o que está no meu coração faz o universo aumentar.
quem ama expande o universo.
a ponte liga as duas margens.
no abismo da vida é o amor que nos liga a partir de cá aos que partiram.
trauma de morrer e amar.
o grande trauma de amar no mundo em que se morre.
(casadesãodinis.porto.25denovembrode2006)

24 novembro, 2006

cage


não sei o que ía dizer.
eram duas caixas de olhos verdes.
não
quatro caixas sem olhos. não.
a poesia é uma (de)formação entre a filosofia e o corpo, então!?
(não? )
a mulher shiva e shakti desenrola-se
muitas mulheres muitas diferentes mulheres bordadas
a sons
ragas garatujam
um longo véu laranja
(!?) não
o percussionista fala italiano, japonês, norueguês
fala silêncio
ao peito um levíssimo tambor reveste a fita vermelha sangue
outras percussões se adivinham nas paredes
no acaso das mãos
não?

23 novembro, 2006

são fios...

...sussurrando certo gesto, por controlo,
palavras mudas, certa fala em borrão de tinta,
certa perna de arrastão em andar forçado
em certa mão, que o fio finta.

um novo rasgo, certo fio desfiado
certa sombra, nova luz de longa idade
o velho ímpeto, adivinhando decerto o certo
fugidio, na penumbra da claridade...

22 novembro, 2006

DESPERTADOR.salvação.


deus, hoje trago uma vontade enorme de te amar.
de te nomear meu deus meus deus.
resgatar o que sobra do meu corpo ao final do dia, e quando falo de corpo falo de corpo:

recompô-lo de ilusão, entretanto gasta.
repor, reorganizar o mapa, as baralhadas peças do puzzle que porventura serão agora novo desenho confuso.
podemos escrever um poema e tudo ganhar sentido e significado como quando me afundo cansado no teu corpo, cansado e em paz.
a esperança pode ser prosaica, como um marido ou um filho, pode.
pode ser deitar a tristeza com cuidado, a cabeça de lado.
amanhã é outro dia, dizia uma namorada com medo de adormecer.

como viver junto ao mar para aguentar, suportar não ter asas.
meu deus meu deus.
(casadaconchada.coimbra.22denovembrode2006)

21 novembro, 2006

Tu

És tu que me salvas
quando à noite
me deito no escuro
embalada a pensar.
És tu que me salvas
quando antes de me deitar
me sento à mesa
e olho para ti
em branco
e começo a magicar.
És tu que me salvas
quando antes de me sentar
me dá vontade de te olhar
em branco
e desenhar um poema
na minha cabeça.
És tu que me salvas
antes de tudo

de me afogar na aridez
de me dedicar à estupidez
de sucumbir à realidade carcomida
de quando em vez.

Aqua est

Lá fora pluvia
cá dentro tertúlia
de sedes e dilúvios
aguaria de iguarias
se as iguarias fossem de aguar.
No aquário
aquaria
a minha sede de mar?
No mar
amaria
a minha sede de amarar?
Lá fora pluvia
pluvia sem parar.

20 novembro, 2006

COGNIÇÕES. física do desencontro.


a cada suspiro teu, impaciente, a porta do café abre e fecha, fecha e abre, ruidando as dobradiças sem óleo.
pouco depois, reflexo condicionado, escutando o barulho levantas do livro os ansiosos olhos em procura da porta enferrujada: nada.
e novamente:
pouco depois, reflexo condicionado, escutando o barulho levantas do livro os ansiosos olhos em procura da porta enferrujada: nada.
mas, sempre que o fazes, desmarca-se a folha do livro que lês para distrair a espera, obrigando-te a reprocurá-la, duplicando à ansiedade um inconveniente esforço de atenção.
se, por acaso, como em quase todas as descobertas do género, em segundo de desesperada lucidez, tomares consciência destas relações de causas-efeitos, fecha o livro ou trava a porta (como o poderás fazer num café público?) ou vai embora, porque ela não virá.
(casadaconchada.coimbra.20denovembrode2006)

19 novembro, 2006

implosão


"Diz-me, seca pedra polida pelo tempo sem dentes, pela fome sem dentes, pó moído por
dentes que são séculos, por séculos que são fome,
Diz-me - a luz nasce esfregando osso contra osso, homem contra homem, fome contra
fome, até que surja no final a faísca, o grito, a palavra, até que por fim a água brote e
cresça a árvore de largas folhas turquesa? "

Octavio Paz, Canção II

lx, belém, novembro,2006

...qualquer parede onde possas acalmar a dor onde finges para ti mesmo que dormes onde tornas bem recta a insónia

a desgraça de ser por aí num lugar de estranhas cores que volteiam na cabeça

(prisões e impossibilidade até para forças maiores que as tuas)

qualquer poça de água medeia a cama o sol o útero onde enroscar o corpo nu e desligado

atracado agora num chão onde os balões das histórias que descobrem portugal se negam e renegam no teu corpo vestido a solidão




18 novembro, 2006

it just felt right to write in english today

"By starlight
I'll kiss thee."
Why not by the sunlight?
Don't want a sunburn...

Dusk is coming. I wait.
See some sparkles.
Perhaps your light
reflecting in the stone of me.
But as stars begin to shine
the light
dims
till
dark.
Dark shines now... and
the stone is forever a stone
waiting for starlight.

17 novembro, 2006

A maçã no escuro*


Quando eu nasci faltou a luz.

Ali em pleno trabalho de parto – não parto, fico – não fico, aninhei-me um pouco mais na barriga da minha mãe. Barriga tímida, de mulher minúscula, habituada a crescer para dentro. No umbigo daquela tarde de Novembro, balançava-me entre permanecer semente na minha cápsula ou vir ser gente no desabrigo do mundo. Nascer foi talvez a primeira de muitas hesitações que fariam o meu caminho.

- Vai ser pequenina, a bebé, outra coisa não se pode esperar… – palavra de médico em antecipado consolo. Apontou o fio de luz da lanterna. Mergulhou a mão e palpou-me a cabeça escondida, à procura do ângulo certo para a ventosa. No rascunho dos pequenos milagres não há borracha para o erro. E o erro poderia ser eu nunca andar, eu nunca falar, nunca escolher.

O doutor agarrou o pequeno crânio e puxou-me.

Pai: luar invertido, toca da noite, pergunta por fazer em resposta adivinhada. Temeu a tempestade sobre a moleirinha ainda tão tenra. Tremeu com o frágil rastro de luz nas mãos. Ali convocados, a súplica, o sangue. Mas...saberia ele parir-se pai? Faltava lamber a cria para lhe ficar com o cheiro.

O doutor agarrou o pequeno crânio e puxou-me.

Vai ser pequenina, a bebé. A mãe corre pela noite do corpo. Secretamente teme que lhe saia um rato pelas pernas daquela escuridão sem fim. Ninguém pede licença para nascer, também esta menina não pediu. Anunciou-se anjo na barriga. E agora, bem na hora de sair, hesita.

O doutor puxou e puxou e puxou.

Não se pense que nascer é vir à luz. Paredes pretas sugam a cabeça e uma dor antiga e macia engole-nos o corpo. Um pouco mais de água antes da sede. Um pouco mais de ninho antes do corte... Mamã, faz-me uma camisola com estes sonhos vermelhos, para os não perder!

Por fim, saí.

Afinal não era assim tão pequenina, três quilos e um quarto de gente. Quem sabe, talvez com bom caroço. E então acertadamente se deverá dizer que a minha mãe, Maria de Fátima, me deu ao escuro.

Dor de parto não sei dizer, mas magoam as asas que deixei na barriga. A porta do mundo é estreita e no buraco da fechadura o corpo aperta-se para caber.
A alma é que não se aperta e chora a ferida aberta nas costas.

­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­__________________________________________
* Título roubado a Clarice Linspector, com amor.


Era tarde...

... e alguém chegava,
a luz vinha de fora, em impulsos de cor
ora violeta, ora amarela, ora negra,
vagas de odores e amuos
e andava, bailava,
badalava
















são fios...

16 novembro, 2006

Pandora, é tarde

Eu tinha uma caixinha
bem guardadinha
dentro do adentro.
Instruí-me para não a abrir
e agrilhoei-a às trevas das entranhas.
Um dia ouvi uma voz
que murmurava lá ao longe
uma melodia de flauta
que badalava, badalava...
É tempo!
Vinham buscar o que estava selado.
Enovelei-me, entrelacei-me, enricei-me.
Era tarde e alguém chegava.
Alguém desfez o enlevo.
Alguém abria a caixa.
Ouvi o ranger cavernoso da tampa
e o Letes drenado a jorrar em abundância.
Ouvi a enchente!
Ouvi o transbordar!
Agora é tarde
e o arrependimento já não pode matar.

14 novembro, 2006

graça



lisboa, 2006













há um lugar de restos de palavras

donde os anjos saem espavoridos
a tropeçar em asas de pombo

(a noite voa já comboio adentro
tão cega e branca como sempre)

posso agora explicar-me no silêncio
o que fez partir essa manhã


como
saí depois do sol da graça cheia de uvas
e a cedi a um tempo quase meu



13 novembro, 2006

DESPERTADOR.mistério.

1. deus: vou explicar: é que se entra no café como quando procuramos a fonte, a sede, é inevitável: viemos ao encontro do que parecia salvar, tira-se o caderno da pasta e anotamos como tú e a bíblia: separem-se as águas (um café e um bolo, por favor!)!, separem-se as águas que se percepcione um horizonte, um amigo, uma amante, entendes?, a esperança mora nessa impossibilidade de esburacar oceanos de desenterro de amantes e amigos que nos asfixiem este grito calado como um cancro na sombra, deus: o meu nome é judas, o dos beijos, das boas carícias, dos falsos milagres.
2. e há mais, deus: é que há pouco o tempo era o mesmo e agora quase não passou, a cartogafria que me desorienta e da qual dependo para adivinhar tem desenhos invisíveis, vou por onde ainda não encontrei e todos os dias anoto em esquecimento um caminho mais a não cruzar, por ali por aqui, repetindo-o com o cuidado dos ladrões que roubam à verdade das coisas a sua mentira; e a divulgam em segredo: e a divulgam secretamente sem pudor sem respeito em poemas como um mau poeta desfaz, assumo, deus, mas que queres que faça. a natureza policia-me para castigo de tão grande crime, tú sabes, o sol procura incendiar-me, tú sabes, que és deus, e é também por isso que me escondo na sombra entrando-lhe assustado e urgente como vês, por isso me escondo na sombra e aguardo quieto: quieto: a pensar: a pensar: que a fuga talvez seja o suicídio silencioso, quieto, de café em café a reiniciar o mesmo mau poema inacabado: deus: o meu nome é judas, o dos beijos doces, das boas carícias, quieto dos falsos milagres.
3. de modo que é um óptimo dia para morrer, deus, alguém o escreveu (não foste tú?), lembro-me de uma canção, todos a sabemos, está um óptimo dia para morrer. morrer aos poucos tem um sabor especial, assim como comer este pastel de nata devagar - apetece sempre mais. o meu nome é judas, deus: o dos beijos lambuzados de nata, o das boas carícias e dos falsos milagres.
4. como terminar esta conversa de agora, deus? que dizer-te menos se nenhum texto termina no fim mas no seu princípio, que se não advém depois mas antes? um poema descasca-se por dentro de nós, desnuda-nos: mas só há conteúdo se previamente houver um buraco onde ir rasgar, uma falta: onde um aparente lapso de lógica ter sumo no seco, água na pedra: um poema é um contra-senso como os teus milagres, semelhante a um poço - um poço é grande irracionalidade: porque só pergunta quem adivinha, procura quem suspeita, com a carga desejável de eternidade. deus, digo-te (e acredita): sou mesmo judas: sou mesmo o judas dos beijos, o das boas carícias e dos falsos milagres. percebeste agora?
(casadaconchada.coimbra. 13denovembrode2006)

12 novembro, 2006

miólogo

Porque tenho estado a trocar palavras e linhas e letras com o paulo sobre deus:, ando mais atenta, os ouvidos mais abertos e a minha aguçada curiosidade mais atiçada. A minha paixão pela música, a minha devoção pela poesia encontram-se em muitos lugares, unem-se em muitas pessoas.
Hoje fundiram-se no Sérgio Godinho. Fizeram uma Ligação Directa. Enquanto trabalhava e ia ouvindo as músicas, estas palavras saltaram do meio da melodia e serpentearam até aos meus ouvindo, enroscando-se na minha mente aconchegada,mente.
A certa altura o bicho mordeu-me e o veneno espalhou-se pelas minhas memórias, conta-minando todos os diálogos já partilhados. A febre accionou o despertador para uma hora qualquer e no meio do meu delírio murmurei estas linhas que foram diagnosticadas como sintomas de uma paixão camiliana por Sérgio Godinho.


"Nunca faças por desvendar um mistério
há mistérios que ninguém sabe porquê
porquê explicar a explicação?

Há segredos sagrados
pelo sim pelo não."


Da música "A Deusa do Amor". Deusa, deus:. Está sempre lá! Acho que esse é o adjectivo para deus: mistério. Porque sim. Por que não?

(E sim, sei perfeitamente que mistério não é adjectivo, mas achei por bem esclarecer, pelo sim pelo não...)

11 novembro, 2006

PAULO. despertador. desta para três.

"Hoje o sol vai brilhar no centro da minha testa. Não o vou tirar mais cedo, vou deixá-lo lá mais um pouco, a ver se não faz ferida. As árvores continuam debaixo dos meus pés, mas sinto-as a fugir, a desnudar-se... já deixaram de ser o tapete frondoso por onde caminhava nas minhas tardes pensativas. Hoje não vou regar, vou apenas deixar um orvalho espalhar gotinhas para dar mais frescura ao meu cenário. Isto foi alguém que me ensinou.
Espreito pelas nuvens e vejo crianças a correr, a saltar por cima de umas bolas laranjas que se movimentam de forma estranha e fazem puff puff. Estalam, rebentam, mas ninguém tem medo. Toda a gente ri e sorri.
Sopro com mais força para as nuvens saírem do meu caminho e estico a minha mão invisível, qual super-herói, agarro uma folha de jornal, faço um cone e meto lá castanhas... muitas castanhas, porque sou guloso e posso sê-lo, esse pecado capital não se aplica mim. Com a outra mão invisível pego num pequeno copo de geropiga e bebo. A todos. À vossa, à minha, à tua.
Hoje dei um passo em frente e aprendi mais uma coisinha ou outra. Ser transcendental é bonito, ser eterno é atractivo, ser omnipotente é delicioso... mas ser mortal é poder saltar fogueiras, comer castanhas, beber geropiga sem usar mãos invisíveis. É isto que me mortifica, é esta a minha pena capital. Por isso, paulo, te inconfidencio, num café junto ao mondego, que dava um dia da minha eternidade para poder saborear umas castanhas contigo. Podes dizer à patrícia. Ela que traga a geropiga!"

10 novembro, 2006

PATRÍCIA.despertador.(para as sete e meia?).

super-patrícia;
uma inconfidência: deus em sopro de há pouco no café junto ao mondego:
"surpreendido, todos os dias as árvores me surgem debaixo dos pés.
o sol, quando é, ventosa na testa insustentável: todas as noites o arranco como se pele e ferida. e cicatriz.
a chuva, quando é, rega no cabelo: dilúvio de não adormecer.
e quando nada, espécie de opaco cinzento ou branco translúcido, nada: ao deitar fecho olhos e abro o armário preto.
ninguém mo ensinou, aprendi eu.
deveria ter morrido aos trinta, agora é tarde: todos os dias os meus pés nos telhados da cidade.
vozes de crianças como bichos entre folhagens.
quando apetece saltar nem sempre é pelos melhores motivos. posso partir todas mas todas as telhas com estrondo.
entre folhas entrevejo crianças como formigas coloridas com t-shirts vermelhas amarelas azuis.
insuportável, posso afirmar.
ou minto ou dou um passo atrás: sei hoje menos do que sabia, com outro descanso, outro paradoxo surpreendido.
ninguém mo ensinou, aprendi eu."

beijo beijo.
(casadaconchada.10denovembrode2006)

PAULO. despertador. para dois


O homem está na sua bolha. Protegido.
Olha para cima. Pensativamente.
Pode sair da bolha e percorrer um caminho
direito, correcto, sem atalhos, sem enganos.
Mas só conhece aquele. Que lhe parece
maravilhoso, admirável e único e admira-se.

O homem está na sua bolha. Protegido.
Olha para cima. Pensativamente.
Sai da bolha e percorre um caminho
tortuoso, a arredondar, ameaçando uma curva perigosa.
Arrisca a volta de 180º
mas não se espeta ou derrapa.
Apenas rapa o que está no fim da curva
para ver mais caminho. Que lhe parece
maravilhoso, admirável e único... será? e pergunta-se.

Há então duas hipóteses: admiração, perguntação.
Há porém muitas escolhas: admiração ou perguntação, admiração e perguntação, admiração mas perguntação, admiração sem perguntação, perguntação sem admiração, perguntação por admiração e ão, ão, ão...
Assim se vai fazendo o caminho
com atalhos como o Capuchinho, a direito como o capuccino.
Assim se vai tendo a companhia intemporal
de um sussurro francês "Chéri tu vas me laisser répondre enfin?".
Que me parece por vezes estar assinalado em placas
numa língua que não percebemos...

09 novembro, 2006

PATRÍCIA.despertador.

cara patrícia,

a minha conversa com deus é estranha.
a começar porque ele não é aparente e presente (às vezes pode aparecer que sim).
surge-me na cabeça e dentro dela e direcciono-lhe algumas questões.
o facto de cá morar de vez em vez, de me ser interlocutor, e de me colocar a falar sózinho e em voz baixa - confere-lhe autenticidade, realidade, factualidade?
é, no mínimo dos mínimos, eu próprio, o meu corpo, a língua que lhe articulo em modo de pergunta - sou eu?
até porque, acrescento, não questiono sequer a sua existência, para mim é evidente.
este aspecto pode trazer uma nova dimensão a este texto: a de eu não ter consciência e conhecimento dele, o que será inconsciência e desconhecimento de mim próprio.
é ou não um estranho diálogo?
há quem sinta uma espécie de necessidade em acreditar para falar com quem seja que for, necessidade a que chamam fé - eu, possivelmente patarecamente, não.
há quem necessite de falar para acreditar em quem quer que seja, necessidade a que chamam fé; eu, possivelmente patarecamente , não: falo-lhe (me) como a ti e como a mim, digo que gosto de poesia, e que a vida é assim, e blá blá.
e desse modo lhe-me coloco questões que me-lhe vão sendo importantes.
há quem precise que lhe falem para saberem um pouco de sim, precisão a que clamam fé - eu, não pedindo, patarecamente também: aguardo.
me.
te: fui suficientemente dúbio?
beijo grande.
paulo.
(casadaconchada.coimbra.9denovembrode2006)

08 novembro, 2006

Arte Lisboa 06

Hoje abre ao público a 6ª edição da Arte Lisboa, considerada a mais importante Feira de Arte Contemporânea no nosso país.

Entre 8 e 13 de Novembro o Parque das Nações junta 65 galerias de arte de vários países e pretende ser ponto de encontro de artistas, coleccionadores, críticos e apreciadores de arte.

O ciclo de debates, organizado pela revista online ARTECAPITAL, contará na 5ª feira, dia 9, com a participação da Dra. Dália Dias, formadora residente da Escola de Escritores.

Para mais informações sobre a Arte Lisboa 06 consulte o site: www.artecapital.net/

05 novembro, 2006

freefall



durante muito
demasiado tempo

a linha de água dos teus olhos

embalou-nos pelo mar
até muito fundo
até muito

eram quase cinco horas

anunciava-se para breve a submersão das estrelas

04 novembro, 2006

as palavras que não chegavam desde 2 de Julho de 2004

Quando era pequenina e andava na escola das carteiras de madeira, escrevia tudo na sebenta. Fazia as cópias, as letras, os números... Adorava escrever e desenhar a minha letra, orgulho da minha professora mas não a menina dos seus olhos.
Um dia, ela deu-nos um desenho a preto e branco. Tínhamos de o colorir e decorar. Depois inventar uma história a partir daquele desenho. Era um simples gnomo a sair de uma casa simples, percorrendo um caminho de seixos.
Entrei naquele caminho, acompanhei o gnomo e criei-lhe uma vida. Inventei uma história tão bela, repleta de cenários, com acção, com adjectivos, com palavras. Ficou bonita.
Quando a minha professora a leu, a menina dos seus olhos despertou e vagueou por momentos pela floresta do gnomo. Quando terminou, lentamente ergueu os seus olhos para mim e com um olhar de meia incredulidade e total orgulho disse:"Patrícia, esta história está muito bonita. Lindíssima. Parabéns!".
Fiquei radiante e voltei para a minha carteira de madeira e caminhei vezes sem conta pela floresta, pelas linhas, por aquela vida. Estava feliz!
Ainda hoje me lembro e sinto a felicidade daquele remoto momento mas não me consigo lembrar da história. Nem tenho aquela sebenta. O que eu desejava tê-la na minha companhia!
Algum tempo depois li "A Floresta" de Sophia, o primeiro livro que li desta autora, e aquela felicidade voltou a inundar-me. Acho que já conhecia Sophia antes de a conhecer.
"Todos nós temos a Amália na voz". Eu não tenho na voz nem a voz. Nem tenho a pena de Sophia. Mas sempre que escrevo tenho-A a planar à minha volta, à roda da minha pena. SEMPRE!

RECOGNIÇÕES

paulo: posso segredar-te esta pergunta? Só hoje?

01 novembro, 2006

DESPERTADOR.


deus: se não for para passar o tempo daqui para ali num salto de tempo no mesmo sítio
(uma cerveja tomada lenta como uma tarde tomada lenta, morde tremoços morde bipolar melancolia que não parece minha),
se não for para passar o tempo daqui para ali num salto de tempo no mesmo sítio:
atirarei pedras de cuspe ao verso que surja, a assustar, até sangrar;
esta tarde não apetece ser guardado no pudor de um verso se não servir para apagar
e acender o candeeiro e ser já amanhã
e ser eu não eu;
hoje não me segredes mais.
(cafénicola,coimbra.1denovembrode2006)



HERMES EXCESSIVO

Tens os braços largos e as pernas muito ágeis
Os glúteos lentos movem-se rijos
da corridas intensa.

Não saberás ainda (respiras?) que o futuro não se pode nomear
mesmo quando os teus passos unem vidas
e cumpres os trabalhos que os deuses te atribuíram.

Por mais que venças espaços e circules,
entre sopros e ânsias,

o repouso sempre acontece. Nesses momentos, quando
ficas vagamente adormecido (o corpo perfeito!), posso enrolar-te no novelo de outros sonhos,
tocando levemente a promessa de novos prazeres.

E os maiores perigos escondem-se
nesse abandono, quando ficámos exangues, esquecidos
do nosso rumo absoluto:

avançar, separados, na direcção do ocaso,
seguindo a mais antiga estrada.

metro à subfície

Sentada

cabeça baixa
olho o chão.
Pés entram, pés saem
mexem, remexem,
cruzam, descruzam,
sapateiam, serpenteiam.
All Star no frio
sabrinas na chuva
botas até ao joelho no sol
obrigam-me a subir
levemente a cabeça.
E se agora uma bailarina
surgisse graciosa
dançasse em bicos de pé
uma música rock alternativa
e saísse montada num cavalo?
Acho que o senhor não lhe ia cobrar o andante!!
Afinal de contas
ela entrou dançante
e saiu a montante...